A certa altura do romance Estorvo, o narrador-protagonista sugere querer visitar a mãe, mas desiste, acreditando que esta poderia ter caído no sono “desinteressada das novas coleções” e estaria a sonhar, talvez com o marido falecido. O cinismo e a verve aguda e amoral do personagem lhe permitem refletir sobre os sonhos dos velhos com esclarecimento de gerontologista astrólogo. Na tese que apresenta, o acervo de sonhos dos velhos, depois de certa idade, se esgota, e eles começam a se repetir.“Mas como nada é totalmente péssimo”, diz,“a memória de um velho também enfraquece, e ele já não tem certeza se sonhou aquele sonho ou não”. E se algo desastroso vier pela frente que ele eventualmente já tenha sonhado,“um precipício, um incêndio, um desastre de avião, a morte de todos os parentes, uma perseguição no labirinto, um cataclismo que a gente acorda sobressaltado com falta de ar”, se levanta com a frase na ponta da língua:“Eu não avisei?” 2. Não tendo certeza se foi sonho ou realidade, volta a dormir e emenda em outro. Já o personagem narrador do livro, que termina esfaqueado, imundo e desfigurado, física e moralmente, espera que alguém–sua irmã rica, a ex-mulher ou o amigo intelectual–lhe dê abrigo por mais uma temporada até que ele possa “ajeitar as coisas”. O romance de Chico Buarque nos ajuda a ter uma visão mais dilatada do tempo histórico, pois do período da redemocratização ao que vivemos hoje, o diagnóstico do romancista-cantor mantém surpreendente atualidade. Nesse meio tempo, quatro governos petistas se sucederam, o que a intuição de esquerda sugeriria progresso. Contudo, a fórmula era premonitória. Roberto Schwarz apontou à época que o narrador talvez fosse “um moço de família vivendo como joão-ninguém a caminho da marginalidade” 3. A compreensão de seu lugar sui-generis no tecido social se encaixaria não nos antagonismos a que estamos acostumados (ricos e pobres etc.),“mas na fluidez e na dissolução das fronteiras entre as categorias sociais”. A estas, no boom das commodities, economistas como Marcelo Neri deram o nome de “nova classe média”, imediatamente adotado pelo governo Dilma4. Na verdade, trata-se de uma reunião do precariado renovado